sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

As Crianças Anjo

Quando eu era criança em Recife,ouvia do meu quarto os meninos brincarem na rua.Ouvia mas não os via e as vezes eles me pareciam falar outra língua.O muro era alto,não me deixava ver "a algazarra" como a Neide chamava.Então eu os imaginava e com eles ia aprendendo todas as musicas das brincadeiras.Na minha Escola não se brincava de nada daquilo,então eu as vezes imaginava que os meninos que brincavam lá na rua eram anjos ou ETs que vinham do céu,só pra brincar ali um pouquinho,daquela brincadeira barulhenta que não havia na Escola.

Minha irmã mais velha subia escondido nas árvores do nosso quintal para vê-los.Eu até subiria se não fosse tão pequena,se na árvore não houvesse aquela coisa gosmenta que suja os vestidos,se eu não tivesse pavor a joelho ralado.
Mesmo assim,sempre que os ouvia brincar eu observava a árvore com vontade e medo.Em um desses dias vi os galhos balançando.A arvore era uma mangueira e por mais mangas que Seu Joaquim,o jardineiro,lhes desse mais eles subiam nos galhos que davam pra rua,pra pegar outras.No céu ou na outra galáxia,não deveria haver mangueiras,porque as crianças anjos ets viviam com fome.

Eu olhava a mangueira balançar e de repente ouvi o baque surdo e uns trapos se cor definida caindo no nosso quintal.Corre a Maria,corre a Neide,corre seu Joaquim,corre Mary Alice também.E eis que vejo o que caiu em nosso quintal: a criança anjo olhava assustada.Sua pele tinha um tom a mais que a da Neide,mas seus cabelos eram escuros e lisos como os meus.Os olhos eram grandes e escuros e estavam assustados com a gente.E mais assustado ainda porque da sua perna jorrava um fio de sangue.

-Vai pra dentro,Alice!!! Era Neide falando,mas eu nem sempre obedecia a Neide imediatamente,e mamãe não estava,então eu seria livre pra ser teimosa.
A criança anjo foi levada pra nossa área de serviço,Maria lavava o sangue que jorrava que ferimento,ele não chorava mas seus olhos estavam assustados,não havia remédio que fizesse o sangue parar.De repente chega uma mulher,mais escura que a Maria,a roupa molhada,descalça,também assustada: a mãe do menino.Ela não chorava,mas demonstrava um pavor.Eu só não entendia porque ela se desculpava.Não havia nos feito nada!

Quando o motorista chegou,apressado como sempre,puseram o menino e a mãe no carro "só no hospital" disse Seu Joaquim.Então eu falei,pela primeira vez até aquele momento,o que fez Neide perceber que eu não havia obedecido:
-Esperem um minuto!
Corri pra o meu saco de balinhas,o que papai me deu quando fiquei um dia inteiro no hospital com uma estranha febre.Elas me fizeram bem e eu imaginei que fossem fazer bem aquele menino.Ele hesitou pra pegar.Parecia ter medo de mim.Olhava pra sua mãe que me disse:
-Não precisa neném,sua mãe pode brigar.
-São meus bombons e é de presente.
Maria disse que ele podia pegar,ele pegou e o carro saiu disparado para o hospital.

Como não haviam noticias eu perguntava a todo mundo da casa:
-Onde está o menino que caiu aqui?
-Para de perguntar!Você nem o conhece!Respondeu a minha irmã.Era hora do jantar e ela e mamãe odeiam até hoje que se fale coisas desagradáveis à mesa.
-Conheço sim!Ele é meu amigo!
-E desde quando se falam ou brincam juntos?
-Você tem inveja Rose,porque não sabe nenhuma musica das brincadeira dele.
E comecei a cantar "tricilomelo..."até o grito da minha mãe chamando Neide me interromper:
-Você tem deixado ela brincar com meninos da rua?
-Não.Não,senhora.
Depois de Maria e Neide explicarem,jurarem,etc,que eu nunca tinha brincado com ele nem com qualquer outra criança anjo,foi a vez do meu sermão:
-A senhorita está proibida de cantar essas coisas sem sentido e de ficar prestando atenção aos que essas pessoas fazem ou deixam de fazer,entendeu,mocinha?
-Mas é uma musica...
-Numa língua inexistente.Eu ensino idiomas e minha filha canta uma musiquinha que é um atentado as linguas conehcidas!Era só o que me faltava!
-É lingua de anjo! E ele definitivamente me mandou subir pra o meu quarto.

Naquela noite papai foi conversar comigo,como sempre fazia.E me disse que o menino anjo estava bem.Havia algo que me preocupava naquele momento,mais que o ferimento da perna dele,mais que outra coisa,e por isso resolvi pedir a papai que me ajudasse a resolver isso.
-Papai,você pode me comprar uns sapatos?
-Mais sapatos?-ele riu- mas não é sua mãe que faz isso?
-Não são pra mim.O menino e sua mãe não tinham sapatos.
Ele concordou.Isso se tornou outro segredo nosso.

Eu passei a semana perguntando pra o pessoal da casa onde ele morava,porque não tinha sapatos,porque sua roupa não tinha cor,porque sua mãe e ele pareciam ter medo de nós e ninguém me dava uma resposta coerente,criança não é burra.Eles não sabiam disso...
No domingo fomos a Igreja e quando saímos ,lá no ultimo banco um cabelo conhecido me chamou atenção.Olhei atentamente e lá estava o menino com sua mãe.Observei: havia uma atadura enorme na sua perna,mas o mais interessante pra mim foi que ele e ela estavam de sapatos.Eu já estava feliz só com isso,mas aí tive a surpresa das surpresas: ele sorriu pra mim e deu tchau,sem medo.Eu respondi,feliz!Entramos no carro e continuei a dar tchau,sorrindo.

-Que alegia é essa minha princesa?

-Papai,o menino anjo não tem mais medo de mim!

4 comentários:

  1. PS:
    "Ouvia mas não os via". Adorei a sonoridade dessa frase.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Amo Clarice Lispector!!!
    Obrigado por lerem e comentarem.
    É muito bom ter meninos lendo esse blog!!!

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